Desejo primario

Hoje, quando fui esquentar leite, ao derramá-lo na panela, fiquei admirada com a brancura e a consistência daquele liquido. E pensei: existem tantas coisas no mundo para serem degustadas, aproveitadas, compartilhadas.
Cogitei a possibilidade de o leite nunca ter existido.Talvez não me fizesse falta alguma, pois eu não posso lamentar o que nunca perdi, mas é aí que está: a existência do leite e de outras coisas, além de me saciar a fome me faz cobiçar coisas além das que já existem. E com isso começo a desejar algo mais.
Não me contento apenas com o leite, quero leite com chocolate, com café, com pão, bolacha, quente, gelado, morno, de caixinha, de vaca e por aí...
O leite foi a primeira coisa que eu desejei, minha primeira cobiça. Depois eu quis dormir, defecar, urinar. O frio foi meu inimigo mais cruel, a fome, a cólica.
Tudo o que temos ao nosso redor nos trás a confortável ilusão de estarmos seguros. Afinal, temos tudo ao nosso alcance.
São tentativas incoscientes para esquecer que a única certeza que temos é que nossas forças se desfazem continuamente, que a morte exige muito mais que a própria vida, sendo a vida uma preparação para a morte.
Daqui da mesa redonda, sentada em uma cadeira dura, ouviando o barulho do tempo se esvair, seguro a xícara que comprei na Espanha com uma reprodução do Guernica, uma boa imagem para o que acabo de pensar.

Texto revisitado de 2005

Nenhum comentário: