Clariciana

Fascinada com as gotas de vermelho sangue-útero que pingavam na água do vaso sanitário, ao mesmo tempo, ela sentia uma pequena tristezinha em saber que pedaços dela estavam indo para um esgoto fétido misturar-se com outros dejetos. Seu organismo leva um tempo todos os meses se preparando para acolher a vida que agora se desfaz tão facilmente, uma potência perdida!

Isso reforça sua melancólica impressão de que a vida se alimenta da morte e vice-versa. Trabalha pra ganhar dinheiro, com dinheiro compra comida, o necessário para obter energia para trabalhar... ciclo vital ou vicioso? Gasta sua vida para viver. Tipo uma bateria que se descarrega para carregar a si mesma!

É ridículo, cômico. Tão cômico que se transforma em absurdo. Quando pensa nisso sua cabeça começa a doer, lateja dos lados, como se um martelinho invisível desse pancadinhas leves em sua têmpora a cada três segundos.

No centro da cidade efervescente, tira da bolsa um remédio para diminuir ao menos o seu mal-estar físico agravado pelo perfume fedido que, às seis horas da manhã, é obrigada a respirar dentro do ônibus. Junta saliva na boca e se esforça para que aquele pedaço branco e amargo desça goela abaixo.

Estava atrasada para o trabalho, mas pra que pressa?! Temos pressa de chegar, fazer, cumprir. Queremos encher o saco vazio da vida, encher até ele estourar. Mas a vida dela é um saco mágico sem fundo que vai sugar tudo até a morte.

Pela janela observa os painéis de publicidade multicoloridos com pessoas lindas e sorridentes transmitindo felicidade e prometendo paraísos: cheque especial, cartão sem limite, cinco suítes, garagem para dez carros, emagreça sem esforço... Inevitavelmente a náusea vem nesses momentos em que sente o vazio do seu mundo. Fica mareada e se controla para não vomitar, o ônibus dá um solavanco, tenta se equilibrar, pisam no seu pé, puxa o sinal, mas o motorista para no outro ponto.

Na calçada conseguiu se acalmar. Estava se sentindo um ser à parte de toda aquela dinâmica organizada que deveria seguir ordeiramente. Pensou em se rebelar, fugir, seguir outro caminho, afinal o que se perderia abandonando um emprego de vendedora de lingeries? Todos os dias eram a mesma coisa: calcinha preta é discreta, serve para qualquer situação, além de disfarçar a gordura em excesso... rosa paixão é para ocasiões especiais e combina com o seu tom de pele bronzeada (artificialmente)... "será que meu namorado não vai achar comportado demais?" Qual a quantidade de merda que uma pessoa consegue ouvir por dia?

Mas não sabia qual o limite da sua liberdade... É totalmente livre pra fazer o que quiser ou há rédeas inconscientes que a guia por caminhos indesejados? Liberdade soava uma palavra mais que abstrata como o amor. Não havia encontrado nada que lhe personificasse o amor, nem mesmo o de Deus.

Viu que semáforo estava no amarelo, atenção! Com um pé direito na rua e o esquerdo na calçada exitou. De onde vinha este impulso que a fazia vasculhar as possibilidades da vida? Agora está vermelho, pare! Recuou, seu cotidiano não comportava o imprevisível, tinha que se submeter ao imperativo que a impuseram. Cabisbaixa seguiu seu caminho, ainda era imatura demais para se desfazer do antigo casulo.

Sussuros do inverno

Por onde devaneia o poeta compondo poesia?
Por onde caminha o louco anunciando profecia?
Por onde brilha o sol esquentando o dia?

Por onde voa o pássaro e a sua melodia?
Por onde vaga o palhaco e a sua alegoria?
Por onde brinca a crianca e a sua alegria?
Por onde repousa o velho e a sua sabedoria?

Quem poderá indicar, onde estão as coisas que fazem o coração pulsar.