Memórias resgatadas

Caderno III

No ócio
No cio
No início

Lendo Clarice:
Eternidade
É não ter idade
Continuidade

Tenho entre minhas pernas uma planta carnívora.
Ela sangra durante cinco dias.
Um inseto vem sugar seu fluído nutritivo.
Ele pareceu se fartar.
A planta se revigorou, está pronta para mais uma ciclo de vida.

Sou insetos que rodopiam lâmpadas envoltas em lustres transparentes.
Iludo-me achando que o calor que me aquece vem diretamente de ti.
Não consigo distinguir a barreira que nos separa, pois giro apaixonadamente a sua volta, para me proteger, apenas.

O foi e o será são transmutações do É.
O É se renova e se desfaz, sendo sempre o mesmo.
Eu sou um corpo em constante martírio, um corpo que não silencia nunca, um corpo que coça, arde, sangra, cheira, cansa, dói, enfim, sou algo que sente e que pensa sobre este sentir.
Há duas coisas que eu sou incapaz de fazer: não pensar e não sentir.
Agora eu senti um leve arrepio no braço esquerdo. Tenho sono e fome.
Ouço o som da chuva e o ruminar do meu estômago vazio que parece um gato preguiçoso.

Sou um dia de sol de verão com nuvens carregadas.
Sou uma indecisão.
Sou um instrumento quieto e desafinado a espera de alguém que venha carinhosamente ajustá-lo, até que uma melodia doce e calma exale de mim.


Sinto um leve arrepio pelo corpo.
Um sussurro ultrapassa a alma.
Uma sensação fluída de gozo. Desejos pelos espaços que há entre nós.
Quando um corpo possui o corpo, a alma se eleva.
Subamos, subamos.





Memórias resgatadas

Caderno II

Preciso organizar meus sonhos na prateleira da vida.
Vai que alguém resolva pegar sem me consultar!
Ou até mesmo roubar. Mas aí já é demais!
Cada um deve ter o seu e deixar o meu conservado de traças, poeiras e dissoluções.

Eu deveria ter levantado,
pego uma caneta e anotado
do começo ao fim
letra por letra
sem tirar ou pôr.
Deveria ter escrito
na tua frente
de modo que depois
nem você pudesse negar
que naquela noite
sussurrastes em meus ouvidos:
que eu sou uma estrela.


Chute a bola
contra a parede
Como se ali
estivesse a rede.

Eu preciso saber como se faz para observar os Homens do alto.
Como se chega a altura?
Qual é o caminho?
Por que eu quero ver os Homens do alto?
Como eu posso ter certeza de que estarei vendo-os do alto?

Teve uma crise psicótica!
Gritou, esbravejou e chorou.
Chorou porque as angústias não cabiam mais em seu corpo.
As lágrimas eram a tristeza pálpavel.
Quis ser pintora, pintar sua vida.
Ser artista de sua própria existência.
E de todas as cores encontrar aquela que possua a beleza de uma flor.






Memórias resgatadas

Caderno I

Inofensivo,
alvo e leve.
Assim como uma folha de papel.
Cortou-me, quando nele tentei escrever uma história.



Toda minha pele exala desejos, vontades, ansiedades.
Socorro!
Algo que me contente. Há?
Sustente, satisfaça.
Estou confusa.
Tantas palavras para dizer.
Tantas sensações entrando pelos meus olhos.
Tudo me faz desejar.
Será a idade?
O tempo?
A situação?



Divagar
vagarosamente
em lembranças vagas
que vagam na mente.


O que as pessoas querem ouvir falar?
O que dá prazer ler?
Sobre amor, sexo, política, tragédia?
Que tal falar sobre o riso?
Sobre o olho no olho.
Sobre a afirmação pessoal.
Talvez usar a alegoria de um palhaço.
O valor dos sentidos e o exagero da racionalização.


Apaguem a luz da minha existência racional.
Ela está ocultando a beleza da sensação.