O Idiota que roubou Dostoievski


Breve relato insólito de um pequeno crime sem castigo
"Ao fim e ao cabo somos o que fazemos para mudar o que somos". Era a frase escrita no marcador que estava separando as últimas 200 páginas das 800 que já tinham sido literalmente devoradas.
A parte o livro havia outras coisas: um lanche de atúm com tomate, uma casca de banana, um celular antigo, uma passagem de trem para Caudiel, um moedeiro com 10 euros, um documento de identidade e um caderno de capa vermelha com fohas em cor amarelo-cremoso onde a jovem estrangeira escrevia suas alegrias e suas angustias existenciais.
Julgando pelos demais objetos que haviam dentro da mochila felinamente furtada, o idiota se deu conta de que o indivíduo roubado, uma estudante estrangeira, estava quase que na mesma situaçao financeira que ele.
O que mais lhe chamou a atençao foi o caderno que se dispos a ler cada página com uma curiosidade sádica e libidinosa. Notou que as datas marcadas nao seguiam uma sequência ordenada e que a letra variava segundo o estado de ânimo da escritora. Parecia que quando estava contente escrevia com formas harmoniosas e femininas e quando estava deprimida a letra era agressiva e pontiaguda.
Ao decorrer das páginas seu interesse passou de mera curiosidade a uma atraçao estomacal por aquelas confidencias roubadas. Paragráfo a pagrágrafo, foi se reconhecendo nas dores, nas dúvidas, nos medos, nos sonhos e nos desejos alheios. Sentia uma mezcla de afinidade e rejeiçao.
Parecia que estava olhando um espelho que refletia uma imagem desconhecida de si mesmo. Com a mirada fixa e angustiada via claramente seu reflexo frágil e oculto, tapado por uma grossa capa de orgulho e vaidade.
Durante 7 dias seguidos voltou ao parque onde havia encontrado por causualidade sua outra metade. Sentava extamente no mesmo lugar onde descansava a dona do caderno para ler o livro que ela nao pode terminar, Os irmaos Karamazóv.
Desde entao passou a ser admirador de Dostoiesvski e frenquentandor assíduo de sebos e livrarias da cidade.